-
Doutor, posso ver meu filho? - perguntou o
senhor com aparência séria e voz calma.
-
Agora não é um bom momento, estamos correndo
para levá-lo à cirurgia. Além do mais o rosto dele está muito machucado. -
respondeu-lhe o médico, que logo em seguida pediu licensa.
-
Salva ele, só tem 22 anos, é um irresponsável,
vou dar-lhe uma bronca quando chegar em casa.
Aquele homem saiu caminhando em direção à
porta silenciosamente mexendo em um telefone celular. O doutor então entrou na
sala de trauma e virou-se para a sua equipe:
-
Tudo pronto? Podemos suibr? Um frasco de manitol
na veia em bolus e chamem o elevador, vamos correndo para o centro cirúrgico.
-
Boa sorte Doutor – gritou o bombeiro que havia
feito o resgate – Posso lhe contar uma coisa? Ficou a marca da cabeça dele na
mureta, nunca vi isso.
Deixou
a sala de emergência pensando se tinha tomado a atitude correta ao não permitir
que o pai visse o filho, no fundo ele queria poupá-lo de ver aquela cena. O
rosto do jovem encontrava-se em um estado lastimável. As múltiplas fraturas na
face lhe davam o aspecto de uma noz quebrada, era possível ouvir o barulho do
ranger dos ossos ao manipular sua cabeça. Os olhos estavam inchados e roxos, em
sua boca um tubo número 8,5 lhe conectava ao ambú que o enfermeiro apertava
ciclicamente para ventilar oxigênio em altíssimas concentrações. Sua pele
estava azulada, cianótica devido ao mau funcionamento dos pulmões. Sua cabeça
encontrava-se enrolada em um turbante de crepom empapado de sangue que escorria
pela maca, além é claro do forte cheiro de cerveja que exalava e tomava conta
do ambiente.
Os
detritos de asfalto lhe sujaram todo o corpo e sua roupa encontrava-se rasgada.
O impacto havia lhe arrancado os tênis e uma enorme marca de pneu precedia a
cena do acidente. No local a motocicleta retorcida encontrava-se a algumas
dezenas de metros distante daquele corpo agonizante.
Ao
entrar no centro cirúrgico, o médico sabia que era quase impossível salvar
aquela vida. Além do gravíssimo traumatismo craniano também cursou com severa
injúria torácica. Seus pulmões haviam sofrido sérias contusões, o que por sua
vez dificultava a oxigenação e piorava ainda mais o edema no cérebro. Saturava
a 60% durante toda a cirurgia e no tubo orotraqueal era frequente a saída de
coágulos.
Apesar
de cansado do plantão noturno e de ter admitido o então paciente ao final da
madrugada, o cirurgião estava bem concentrado e queria muito ajudar aquela
vítima. Agia rapidamente e era sagaz em seus movimentos, sabia que cada segundo
era precioso. Terminava de fazer a
craniotomia quando por um segundo olhou pela janela, o sol começava a surgir e
olhar para dentro da sala. O ar condicionado esfriava bastante o ambiente e no
rádio o locutor começava a dar bom dia em baixo volume, nenhuma outra voz era
ouvida a não ser o motor da freza. De repente o silêncio foi rompido pelo
anestesista:
-
Bradicardia...- mais alguns instantes de
silêncio e... - Parou!!! O paciente parou!!! Vamos massagear... Adrenalina e
desfibrilador!!!
Os
dois anestesistas tentavam reverter aquela parada cardíaca. O entra e sai das
enfermeiras e auxiliares a ajudar na reanimação era constante, mas aquela
altura já era cada vez mais remota as chances de sobrevivência...
Alguns
minutos depois em uma sala localizada no setor de emergência.
-
E então doutor... como está meu filho?
-
Senhor, o cérebro estava muito inchado e
machucado, sangrava bastante, ele teve uma parada cardíaca durante a cirurgia
e...
-
Pare doutor, por favor pare! Não precisa
continuar. Meu filho morreu , né?
-
Infelizmente!
-
Eu quero ver.
Sentindo-se
na obrigação de cumprir o que o havia prometido há algumas horas atrás, o
cirurgião permitiu que aquele senhor entrasse.
-
Por favor, me acompanhe.
Pensava
como aquele senhor era forte, uma muralha. Não havia derramado uma lágrima
sequer ou expressado desespero. Caminharam juntos até a escada, no subsolo
atravessaram um longo e silencioso corredor. Em uma sala havia um funcionário
dormindo.
-
Por favor, abra para nós a porta do necrotério.
Ao
entrar na sala avistaram logo próximo a porta uma maca com um saco preto em
cima. Entraram e silenciosamente o médico abriu o zíper exibindo-lhe o rosto do
filho. Dessa vez estava sem poeira de asfalto, os olhos menos inchados e o roxo
sob os olhos mais ameno. O turbante que o enrolava a cabeça estava limpo, as
narinas estavam tampadas com algodão e não havia sangue sobre a pele e nem
tubos o invadindo. Nesse momento, a fortaleza daquele senhor foi duramente
atingida e foi ao chão. O desespero tomou-lhe a face e as lágrimas vieram junto
com um forte grito:
-
NÃO
Ao
deixar o plantão, o médico o fez com a consciência tranquila. Sabia que havia
feito de tudo e que aquele era um daqueles casos onde a gravidade do caso
mostra que na medicina não há milagres. Porém uma dúvida estava a lhe perturbar
a cabeça, se havia tomado a decisão certa ao evitar que o pai visse o filho em
condições precárias logo assim que foi admitido no hospital. Mas de uma coisa
ele tinha certeza, aquele caso nunca deixaria a sua memória.
Dr. Bernardo de Andrada