terça-feira, 2 de outubro de 2012

O Drama Que Se Repete - Queda de Moto


-        Doutor, posso ver meu filho? - perguntou o senhor com aparência séria e voz calma.

-        Agora não é um bom momento, estamos correndo para levá-lo à cirurgia. Além do mais o rosto dele está muito machucado. - respondeu-lhe o médico, que logo em seguida pediu licensa.

-        Salva ele, só tem 22 anos, é um irresponsável, vou dar-lhe uma bronca quando chegar em casa.

 Aquele homem saiu caminhando em direção à porta silenciosamente mexendo em um telefone celular. O doutor então entrou na sala de trauma e virou-se para a sua equipe:

-        Tudo pronto? Podemos suibr? Um frasco de manitol na veia em bolus e chamem o elevador, vamos correndo para o centro cirúrgico.

-        Boa sorte Doutor – gritou o bombeiro que havia feito o resgate – Posso lhe contar uma coisa? Ficou a marca da cabeça dele na mureta, nunca vi isso.


            Deixou a sala de emergência pensando se tinha tomado a atitude correta ao não permitir que o pai visse o filho, no fundo ele queria poupá-lo de ver aquela cena. O rosto do jovem encontrava-se em um estado lastimável. As múltiplas fraturas na face lhe davam o aspecto de uma noz quebrada, era possível ouvir o barulho do ranger dos ossos ao manipular sua cabeça. Os olhos estavam inchados e roxos, em sua boca um tubo número 8,5 lhe conectava ao ambú que o enfermeiro apertava ciclicamente para ventilar oxigênio em altíssimas concentrações. Sua pele estava azulada, cianótica devido ao mau funcionamento dos pulmões. Sua cabeça encontrava-se enrolada em um turbante de crepom empapado de sangue que escorria pela maca, além é claro do forte cheiro de cerveja que exalava e tomava conta do ambiente.

            Os detritos de asfalto lhe sujaram todo o corpo e sua roupa encontrava-se rasgada. O impacto havia lhe arrancado os tênis e uma enorme marca de pneu precedia a cena do acidente. No local a motocicleta retorcida encontrava-se a algumas dezenas de metros distante daquele corpo agonizante.

            Ao entrar no centro cirúrgico, o médico sabia que era quase impossível salvar aquela vida. Além do gravíssimo traumatismo craniano também cursou com severa injúria torácica. Seus pulmões haviam sofrido sérias contusões, o que por sua vez dificultava a oxigenação e piorava ainda mais o edema no cérebro. Saturava a 60% durante toda a cirurgia e no tubo orotraqueal era frequente a saída de coágulos.

            Apesar de cansado do plantão noturno e de ter admitido o então paciente ao final da madrugada, o cirurgião estava bem concentrado e queria muito ajudar aquela vítima. Agia rapidamente e era sagaz em seus movimentos, sabia que cada segundo era precioso. Terminava de  fazer a craniotomia quando por um segundo olhou pela janela, o sol começava a surgir e olhar para dentro da sala. O ar condicionado esfriava bastante o ambiente e no rádio o locutor começava a dar bom dia em baixo volume, nenhuma outra voz era ouvida a não ser o motor da freza. De repente o silêncio foi rompido pelo anestesista:

           -        Bradicardia...- mais alguns instantes de silêncio e... - Parou!!! O paciente parou!!! Vamos massagear... Adrenalina e desfibrilador!!!

            Os dois anestesistas tentavam reverter aquela parada cardíaca. O entra e sai das enfermeiras e auxiliares a ajudar na reanimação era constante, mas aquela altura já era cada vez mais remota as chances de sobrevivência...

            Alguns minutos depois em uma sala localizada no setor de emergência.

            -        E então doutor... como está meu filho?

-        Senhor, o cérebro estava muito inchado e machucado, sangrava bastante, ele teve uma parada cardíaca durante a cirurgia e...

-        Pare doutor, por favor pare! Não precisa continuar. Meu filho morreu , né?

-        Infelizmente!
           
            -        Eu quero ver.

            Sentindo-se na obrigação de cumprir o que o havia prometido há algumas horas atrás, o cirurgião permitiu que aquele senhor entrasse.

-        Por favor, me acompanhe.
 
            Pensava como aquele senhor era forte, uma muralha. Não havia derramado uma lágrima sequer ou expressado desespero. Caminharam juntos até a escada, no subsolo atravessaram um longo e silencioso corredor. Em uma sala havia um funcionário dormindo.

         -        Por favor, abra para nós a porta do necrotério.

            Ao entrar na sala avistaram logo próximo a porta uma maca com um saco preto em cima. Entraram e silenciosamente o médico abriu o zíper exibindo-lhe o rosto do filho. Dessa vez estava sem poeira de asfalto, os olhos menos inchados e o roxo sob os olhos mais ameno. O turbante que o enrolava a cabeça estava limpo, as narinas estavam tampadas com algodão e não havia sangue sobre a pele e nem tubos o invadindo. Nesse momento, a fortaleza daquele senhor foi duramente atingida e foi ao chão. O desespero tomou-lhe a face e as lágrimas vieram junto com um forte grito:
 
           -        NÃO

            Ao deixar o plantão, o médico o fez com a consciência tranquila. Sabia que havia feito de tudo e que aquele era um daqueles casos onde a gravidade do caso mostra que na medicina não há milagres. Porém uma dúvida estava a lhe perturbar a cabeça, se havia tomado a decisão certa ao evitar que o pai visse o filho em condições precárias logo assim que foi admitido no hospital. Mas de uma coisa ele tinha certeza, aquele caso nunca deixaria a sua memória. 

Dr. Bernardo de Andrada

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